A MULHER REI busca representatividade dentro e fora da tela

Você acha que um filme sobre mulheres guerreiras amazonas estrelado pela Meryl Streep teria o mesmo peso de um filme sobre mulheres guerreiras africanas estrelado pela Viola Davis? Se sua resposta for “não”, então você está completamente de acordo com a atriz protagonista de “A Mulher Rei” (The Woman King, 2022). 

 

Viola é uma atriz que conhece bem como funciona a indústria de Hollywood. Ela sabe que um filme estrelado por Meryl Streep, provavelmente alcançaria muito mais cifras de bilheteria e que, inclusive, o valor do cachê da mega "oscarizada" atriz seria, infinitamente, maior que o seu. Viola já teve quatro indicações aos Oscar, venceu em 2017 pelo seu papel no filme “Um Limite Entre Nós” (Fences 2016); já ganhou um Emmy e dois Tony Awards e, mesmo assim, seu salário não se equipara ao das atrizes brancas de mesmo (ou, às vezes, bem menos) talento que o dela.

 

Essa realidade reflete duas verdades incontestáveis: 1ª) A indústria hollywoodiana é extremamente preconceituosa; 2ª) Extremamente preconceituosos também, somos nós, o público,em sua maioria. É por isso que este é um filme que pode ser considerado um divisor de águas para uma ruptura dessa triste realidade. E mesmo que seja pelo viés do puro capitalismo, caso o filme renda muito dinheiro para os bolsos dos estúdios e distribuidoras, isso pode trazer uma nova onda de filmes blockbusters protagonizados por atores e atrizes negros/negras. Sem falar que esse seria um filme de sucesso desvinculado das milionárias produções encabeçadas pela Marvel ou DC Comics. É claro que é inegável o poder da influência de “Pantera Negra” (Black Panther, 2018) como o filme que abriu as portas para essa nova possibilidade. Seja como for, a importância desse movimento está na representatividade para as futuras gerações, tanto de público quanto de mercado. 


O trailer do live action do filme da “Sereia”, comprova de maneira enfática, como a sociedade que vivemos ainda é pautada no preconceito racial/de cor. O teaser da produção da Disney causou uma comoção negativa em relação a atriz Halle Bailey, que interpreta a personagem principal do filme. O motivo: a Sereia é negra!

  

Dito isso, vamos agora voltar até o século XIX, no oeste do continente africano.O comércio de pessoas negras estava a todo vapor entre os europeus e as tribos africanas.Isso mesmo, os governantes das tribos africanas vendiam pessoas de seu próprio povo aos compradores vindos da europa ou de colônias europeias. Porém, em uma dessas tribos, mais especificamente, a de Daomé, hoje Benim, possuía um exército de mulheres guerreiras, as Agojie, cuja líder pretendia acabar com tal comércio. Constam em relatos históricos que as Adojie realmente existiram, assim como o seu rei Ghezo, que reinou de 1818 a 1859. Existem registros também de Nanisca e Nawi, porém nada que confirme que elas eram conforme estão representadas no filme.


Além do problema do comércio do povo africano, existiam também, os conflitos entre as diferentes tribos do continente. Os Daomé eram obrigados a pagarem tributos e obedecerem as regras comerciais dos Oyo, hoje Nigéria. Esse é o pano de fundo para o roteiro mergulhar no universo ficcional e transformar a produção num verdadeiro épico de guerra. A diretora Gina Prince-Bythewood aceitou o desafio de rodar o filme no prazo de 63 dias, e graças ao seu talento e a de uma equipe afinada, tudo foi feito de maneira impecável. As atrizes, que são a maioria de origem africana, também fizeram um trabalho primoroso, não só pelas cenas de luta, como na atuação. O destaque vai para Thuso Mbedu, que interpreta a jovem Nawi. A atriz sul africana, que tem 31 anos de idade, e aparenta ter 16, é simplesmente uma gigante na atuação. Este é o seu primeiro longa metragem hollywoodiano. Antes, ela também se destacou na série “The Underground Railroad”, da Prime Video.

 

John Boyega interpreta o Rei Ghezo, que tinha várias esposas e confiava completamente em Nanisca (Viola Davis), comandante das guerreiras. O poder de força das Agojie era tanto, que elas residiam nas dependências do palácio. Ali elas viviam numa espécie de universo paralelo em relação à realidade das mulheres das tribos africanas, que eram consideradas inferiores e sem direitos de escolhas para suas vidas. Quase todas foram estupradas pelos homens, seja de sua, ou outras tribos, antes de entrarem para o exército das guerreiras. Somente através da linguagem da uma outra violência é que elas conseguiram a liberdade pelos seus corpos, mesmo que isso significasse morrer durante as batalhas.Ou seja, como se não bastasse a perversidade praticada pelos brancos em relação a escravização das pessoas negras, a vida era (e ainda é) pior para as mulheres. 

 

Nesse sentido, “A Mulher Rei” traz um convite vital para uma profunda reflexão sobre a história mundial e como as sociedades ocidentais se estabeleceram, sócio, econômica e culturalmente a partir disso. A historiadora e filósofa brasileira Lélia Gonzalez foi pioneira nos estudos e no ativismo sobre a Cultura Negra no Brasil. Sendo inclusive, uma crítica contínua do movimento feminista branco elitista. Em um dos seus artigos, ela diz: “exatamente porque tanto o racismo como o feminismo (branco) partem das diferenças biológicas para estabelecerem-se como ideologias de dominação. Cabe, então, a pergunta: como se explica este ‘esquecimento’ por parte do feminismo (branco)? A resposta está no que alguns cientistas sociais caracterizam como racismo por omissão e cujas raízes se encontram em uma visão de mundo eurocêntrica e neo-colonialista da realidade” - GONZALEZ, Lélia. Artigo: Por um Feminismo Afro-latino-americano.


Talvez um filme não tenha a capacidade de provocar uma mudança tão radical nas estruturas sociais, mas, definitivamente, ele provoca reflexões que contribuem para a quebra do paradigma branco eurocêntrico.




FICHA TÉCNICA


Filme: Mulher Rei (The Woman King)

Diretora: Gina Prince-Bythewood

Roteiro: Dana Stevens e Maria Bello (história) 

Elenco: Viola Davis, Thuso Mbedu, Lashana Lynch, John Boyega

Fotografia: Polly Morgan

Produção: TriStar Pictures, JuVee, Welle Entertainment, Jack Blue e Entertainment One

Distribuição: Sony Pictures

País: Canadá e EUA

Duração: 2h15min

Ano: 2022

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