Justamente baseada nessa premissa, é que a diretora Greta Gerwig inicia a sua versão cinematográfica de BARBIE, fazendo uma referência ao filme “2001 - Uma Odisséia no Espaço”, de Stanley Kubrick, com a chegada de uma boneca que, mudou para sempre o universo infantil de uma geração.
A partir daí, somos transportados para Barbieland, o mundo perfeito e cor de rosa onde vivem todas as Barbies e todos os Kens. Greta, que também assina o roteiro do filme, em parceria com seu esposo Noah Baumbach, destila uma enxurrada de sátiras divertidíssimas. Aliás, essa é uma das principais características dessa dupla, que consegue construir histórias e diálogos irreverentes, inteligentes e bem humorados. Vide filmes como “Frances Ha” (2012) e “Mistress America” (2015). Cada um deles também, assumindo o roteiro e direção, individualmente, já tiveram filmes indicados ao Oscar, Greta com “Lady Bird” (2017) e Noah com “História de Um Casamento” (2019).
A escolha de fazer um filme humanizado e atual sobre a Barbie, deve ter soado como um prato cheio e delicioso para eles. Barbieland é um mundo liderado pelas Barbies, e lá existem todos os tipos e estilos: Barbie cadeirante, Barbie negra, Barbie presidente, Barbie física, Barbie com corpo não curvilíneo. E o mesmo vale para os Kens, eles também preenchem toda a diversidade de corpos. Exceto o Allan, que foi um boneco lançado nos anos 60, para ser amigo do Ken, mas só lançaram uma única versão dele. E no filme está muito bem representado pelo ator Michael Cera.
O par principal dentre as Barbies e Kens, ficou para Margot Robbie, que faz a Barbie Estereotipada e Ryan Gosling, que faz o clássico Ken loiro e de corpo bronzeado. É perceptível como os atores parecem ter se divertido muito com tais papéis. E a atriz australiana, que também é uma das produtoras do filme, se sobressai, mais uma vez, com o desafio de uma atuação que se equilibra entre soar excessivamente caricata (mesmo que neste caso seja totalmente permitido), e mais humanizada e real. Robbie foi merecidamente indicada ao Oscar em 2018 por sua atuação em “Eu, Tonya”.
A produção de arte do cenário e figurinos são um grande destaque do filme, que faz ressaltar tudo ser impecável em Barbieland. Toda essa perfeição plástica começa a desmoronar quando a Barbie Estereotipada começa a ter pensamentos sobre a morte. Isso desencadeia uma série de pequenos problemas no seu corpo perfeito. Ela vai então se consultar com a Barbie Esquisita, que leva esse apelido porque uma criança brincou intensamente com ela, digamos assim. E é vivida, acertadamente, pela atriz Kate McKinnon, que vem fazendo papéis, cada vez mais frequentes no cinema desde que saiu do programa de TV “Saturday Night Live”, em 2022. A Barbie Esquisita então, diz à Barbie Estereotipada que só há uma solução para o problema dela: ir ao mundo real e conhecer a criança que brinca com ela. É claro que o Ken bronzeado, que quer ser mais que um amigo para Barbie, acaba indo com ela nessa jornada até o mundo fora de Barbieland.
A partir daí, o filme consegue abordar temas como patriarcado, machismo e diversos preconceitos, com uma enorme gama de piadas debochadas e contextos que, ao mesmo tempo, divertem e demonstram de forma, quase óbvia, o quanto estamos inseridos numa sociedade que ainda derrapa, e muito, em todas essas questões. Greta e Noah ainda incluem na história a própria empresa criadora da boneca, a Mattel. Com isso, um cenário metalinguístico é criado dentro da narrativa.
O ator Will Ferrel interpreta o diretor da empresa, cujo ambiente de trabalho parece também estar inserido em um universo intermediário entre Barbieland e o mundo real. O fato da própria Mattel ser incluída no roteiro também auxilia no viés mercadológico, uma vez que o marketing de divulgação do filme já entra pra história como sendo um dos que mais impactaram a venda de produtos para empresas de diferentes ramos que se associaram a versão cinematográfica da boneca.
Algumas pessoas vêm considerando a produção extremamente feminista. E sim, como bem disse a Margot Robbie em uma entrevista: “se pensarmos no feminismo como um movimento que busca igualdade entre todos, independente do gênero. Mas, ao mesmo tempo, a proposta de Barbie não é de ser colocada em um rótulo ou, literalmente, numa caixa”. A esse respeito, vale citar uma cena, inclusive, que funciona como um gatilho contra o etarismo: Barbie está no mundo real e resolve sentar um pouco para se concentrar e pensar melhor sobre tudo que vem sentindo. Depois desse momento, que é consideravelmente emocionante, ela olha para o lado e vê uma senhora idosa sentada. Como no mundo dela ninguém envelhece, ela fica hipnotizada com aquela mulher. Elas se olham e Barbie diz: “Você é linda!”. A senhora responde dizendo que sabe disso. Detalhe, essa senhora é ninguém menos que a Bárbara Handler, filha da criadora da boneca, cujo nome foi inspirado nela.
Greta e Noah elaboraram um roteiro que utiliza os estereótipos e clichês da cultura pop contemporânea para, logo em seguida, desconstruí-los. Como, por exemplo, quando Ken volta do mundo real, antes da Barbie, com a compreensão de que em Barbieland os homens foram colocados de lado, como meras figuras coadjuvantes, mas que, no outro mundo, o real, são eles que estão no comando. Essa nova postura machista de Ken, modifica completamente a dinâmica comportamental das Barbies, que passam a tratar os homens com reverência, lhes dando cervejas nas mãos quando estes a ordenam. O choque dos dois mundos provoca transformações em ambos, e é justamente esse ressoar que provoca estranheza e desconforto, que surge a reflexão mais profunda sobre os comportamentos e dinâmicas sociais. Afinal, seja no mundo fictício, ou no mundo real, é preciso tomar consciência de que a verdadeira liberdade de escolha está na descoberta de que é possível ocupar espaços sem anularmos uns aos outros.
Ficha Técnica:
Filme: Barbie
Diretora: Greta Gerwig
Roteiro: Greta Gerwig e Noah Baumbach
Elenco: Margot Robbie, Ryan Gosling, Simu Liu, Issa Rae, Kate McKinnon, Michal Cera, America Ferrera, Will Ferrel
Fotografia: Rodrigo Prieto
Empresas Produtoras: Mattel, LuckyChap Entertainment, Mattel Films, Heyday Films, NB/GG Pictures
País: EUA
Ano: 2023
Duração: 01h54
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Precisamos muito pensar sobre os caminhos da humanidade e atuar de forma coerente com nosso ideal de mudança.