Sinead O’ Connor é uma necessária profeta do caos em NOTHING COMPARES

A cantora irlandesa Sinead O’ Connor tem uma história de vida que realmente merecia estar registrada, e o documentário Nothing Compares, dirigido pela também irlandesa Kathryn Ferguson cumpre bem este papel. E ao dizer que merecia haver um registro sobre a vida e obra de tal artista, é porque o seu valor não está somente no seu incrível talento musical, mas também e, principalmente, pelo seu posicionamento político e luta pelos direitos humanos.

O espectador acompanha de maneira cronológica a ascensão e, digamos, “queda” da artista, ouvimos em narração off os profissionais que trabalharam com ela, amigos e a própria cantora. O roteiro se delineia de forma circular: começa com um momento em que a cantora é apresentada e chamada ao palco e, em seguida, um forte som de vaias e gritos por uma plateia enfurecida com sua presença. Ela então, se afasta do microfone e lança um olhar fixo para o público, que aumenta ainda mais os gritos e as vaias. A partir daí, a narrativa volta no tempo para contar sobre a vida e o início da carreira da artista, até retornar para este mesmo momento do palco.

Vinda de uma família que praticava um catolicismo ortodoxo, que serviu somente para traumatizá-la, em vez de lhe dar paz de espírito, o filme proporciona um mergulho na história pessoal da cantora, que sofreu terríveis abusos físicos e psicológicos de sua mãe, após ela se separar de seu pai. Ouvimos a própria cantora contar a história por trás da canção “Troy”, se referindo a um episódio de quando era criança e sua mãe a deixou do lado de fora da casa durante uma semana.

 
Em 1990, ela lança a música que marcaria, para sempre, sua jornada como cantora: “Nothing Compares 2 U”. Composta por Prince, a canção a alçou à patamares ainda mais elevados, ganhando inúmeros prêmios musicais. Detalhe: Nothing Compares 2 U não aparece no documentário. Isso porque, os administradores dos direitos autorais de Prince não cederam o uso da música para o filme.

O sucesso da carreira de Sinead corre em paralelo aos acontecimentos do mundo e, diferente de muitos artistas, ela nunca foi alheia a esses fatos. Mesmo com o sucesso e a fama, ela jamais deixou de lado o seu diferencial humanitário, que acabou por transformá-la numa figura rotulada como “controversa”. Ela defendia veementemente a não criminalização do aborto, os direitos das mulheres, das pessoas negras, denunciava os abusos e pedofilia na Igreja Católica, e bateu de frente com o governo dos EUA, quando se recusou a se apresentar durante um festival, que seria executado o hino nacional americano para homenagear os soldados que estavam lutando na Guerra do Golfo. O ápice do filme e, também da carreira da artista, é inegavelmente, quando ela rasga uma foto do então Papa João Paulo II, ao vivo, durante o programa “Saturday Night Live”. Vale lembrar que todo esse posicionamento foi feito numa época em que não existiam redes sociais, ou seja, Sinead dava literalmente a cara à tapa e sentiu na própria pele a tal cultura do cancelamento.  

O mais interessante da narrativa do filme é que, ao acompanhar a cronologia dos fatos, tudo aquilo que ela dizia, e que tinha sido perversamente rechaçada, foi comprovado depois. Assim, Sinead se torna uma profeta do caos. Alguém que precisava dizer e fazer tudo aquilo que fez para abrir caminhos a toda uma geração de outros artistas que surgiriam depois disso. E ouso dizer que, até hoje, ainda não surgiu alguém com tamanho engajamento explícito e direto pelos Direitos Humanos quanto ela. O final do filme nos apresenta uma Sinead com as marcas do tempo no rosto, usando uma linda vestimenta islâmica, religião que passou a seguir, cantando “Thank You For Hearing Me” com sua belíssima voz.

 

Nothing Compares foi exibido na abertura da 14º edição do Festival In-Edit Brasil - Festival Internacional do Documentário Musical, que aconteceu em São Paulo de 15 a 26 de junho de 2022.


Ficha Técnica:

Direção: Kathryn Ferguson  

Roteiro: Eleanor Emptage, Kathryn Ferguson e Michael Mallie     

Fotografia: Luke Jacobs 

Produção: Ard Mhacha Productions, BFI Doc Society Fund, Field of Vision (II), IE: Entertainment, Northern Ireland Screen, Screen Ireland e Tara Films 

Distribuição: Showtime Networks

País: Reino Unido e Irlanda 

Ano: 2022

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