CORINGA: Numa sociedade doente um vilão pode ser herói?

Desde o lançamento da primeira história em quadrinhos do herói Batman, criado por Bob Kane e Bill Finger, em 1940, o vilão com um perturbador sorriso já aparecia. De lá para cá o Coringa, viria se tornar um dos adversários mais famosos das HQ’s. O personagem passou por diversas características, que variaram de acordo com o contexto de cada época. No início ele foi apresentado de maneira bem violenta e depois ficou com uma personalidade menos sanguinária, principalmente no período do Comic Code Authority, uma espécie de comitê de censura que avaliava o teor das revistas e as classificavam como sendo de “boa ou má influência” para as crianças e os jovens da época. Se apresentando mais ou menos maníaco, Coringa é o vilão cuja origem de sua história é uma das mais enigmáticas. 


A primeira adaptação de “Batman” para o cinema foi em 1989. Estrelado por Michael Keaton e dirigido por Tim Burton, o ator Jack Nicholson foi o escolhido para viver o Jack Napier, que se tornaria o Coringa. Nessa versão, o vilão nos é apresentado com cabelo verde e a expressão de um sorriso caricato, em decorrência de uma queda sofrida num caldeirão com substância química em uma fábrica.

Quase 20 anos depois, o diretor inglês, Christopher Nolan, nos apresenta o mesmo vilão numa interpretação tenebrosamente sombria e incrível, vivido pelo ator australiano Heath Ledger. “Batman - O Cavaleiro das Trevas” (Batman - The Dark Knight, 2008) fez parte de uma trilogia que trouxe um ar muito mais soturno, tanto para o herói quanto para seus vilões. Infelizmente Ledger faleceu antes de receber o reconhecimento por esse trabalho. No roteiro de Nolan é o próprio personagem quem fornece diferentes versões de sua origem, o que leva os espectadores a continuarem sem saber qual delas é verdadeira.



Outro ator que também fez uma versão do Coringa foi Jared Leto, no filme “Esquadrão Suicida” (Suicide Squad, 2016) que, de maneira geral, não recebeu boas críticas. E digamos que o vilão aqui ganha um visual meio rapper  romantizado, devido a sua parceira de cena, Arlequina, interpretada pela atriz Margot Robbie.

Depois de tantas versões, o Coringa, dirigido e escrito por Todd Phillips, é apresentado, pela primeira vez, em um filme no qual ele é o protagonista solo. O roteiro foca de maneira profunda na possível origem do personagem e mergulha por um viés extremamente sócio-psicológico. Arthur Fleck é interpretado pelo sempre talentoso Joaquin Phoenix, cuja preparação incluiu perder 23 kg, além de analisar vários vídeos sobre pessoas com a Síndrome de Riso e Choro Patológico. Pelo fato de o roteiro se basear numa doença real, a construção da personagem pelo ator é muito verossímil. O riso incontrolável acontece sempre que ele está sob alguma circunstância de estresse. No decorrer do filme, vamos percebendo que essa síndrome não é a única coisa da qual Arthur sofre. E, por isso, ele precisa tomar seus sete medicamentos diários.


Todd Phillips é um diretor que ficou conhecido por filmes como “Se Beber, Não Case” (The Hangover) e outras comédias nesse mesmo estilo. Em 2016 ele pareceu dar um outro rumo na sua carreira com “Cães de Guerra” (War Dogs). E agora ele surpreende por completo ao nos apresentar uma versão excepcionalmente autêntica do Coringa. O filme já levou o prêmio principal no Festival de Veneza e Joaquin Phoenix está cotado para concorrer ao Oscar de 2020. 

Arthur trabalha como palhaço em uma pequena empresa, que oferece os serviços para lojas e hospitais infantis. Devido aos seus problemas psicológicos, volta e meia ele passa por situações constrangedoras, que acabam em agressões verbais ou físicas contra ele. Isso porque as pessoas não compreendem o seu riso nervoso e acham que ele está tendo um comportamento de deboche. Ele é acompanhado por uma assistente social em sessões de terapia, que lhe passa o exercício de manter um diário para expressar como se sente. Em desses momentos, ele escreve: “O pior de ter um problema mental é que as pessoas esperam que você aja como se você não tivesse”



O que Arthur sonha mesmo é ser comediante e fazer stand-ups. No entanto, o seu humor é, digamos, um tanto quanto subjetivo demais. Ele vive com sua mãe, Penny, interpretada por Frances Conroy, de quem cuida com muito carinho. Eles são fãs do programa de entrevistas apresentado por Murray Franklin, vivido por Robert De Niro. E é impossível não notar que a presença De Niro traz uma forte referência a um dos seus personagens mais marcantes e também psicótico, na produção de 1976, dirigido por Martin Scorsese, “Taxi Driver”.


Em relação aos programas de TV e a mídia, podemos dizer que funcionam também como um dos personagens na narrativa do filme, responsáveis, inclusive, por algumas viradas emocionais de extrema importância para Arthur. 


Gotham é uma cidade suja e que está vivendo um momento de muita criminalidade. A população está às vésperas de eleições para prefeito e este pode ser um clima perfeito para os políticos “venderem” seus projetos de governo para a cidade. Um dos candidatos é Thomas Wayne (Brett Cullen), pai de Bruce Wayne, que ainda é uma criança e nem sonha em ser o Batman. O discurso de Thomas é bastante elitista e acaba não agradando muito o povo mais pobre e marginalizado, principalmente depois de um incidente provocado por Arthur, que acaba ganhando notícias nos jornais da cidade. E a relação dele com Thomas se torna ainda mais melindrosa após uma revelação que é tão inesperada que deixa uma enorme dúvida até o final do filme.


A narrativa apresenta um clima de tensão crescente, pois o espectador já conhece esse personagem e sabe o quanto é violento e psicótico. A atuação de Joaquin Phoenix é algo simplesmente hipnotizante, isso porque ele consegue manter, ao mesmo tempo, doçura, medo, terror e loucura. A construção do roteiro mostra um protagonista que apresenta inúmeras patologias psicológicas e vive em uma sociedade que o marginaliza constantemente. Para ele, a violência acaba se tornando a única saída para sua sobrevivência. Fica bem claro que a história apresentada na tela está sob o ponto de vista de Arthur. Alguns grupos acusaram o filme de fazer apologia a violência de uma maneira equivocada. Realmente a narrativa nos leva a sentir empatia por um personagem que usa a violência para justificar suas frustrações, mágoas e rancores. Porém, avaliando por um viés mais profundo, a mensagem que fica é o quanto se mede o colapso de uma sociedade quando um vilão pode se tornar um herói. Nesse sentido, Coringa cumpre muito bem o seu papel.


Ficha Técnica: 


Diretor: Todd Phillips
Roteiro: Todd Phillips e Scott Silver
Elenco: Joaquin Phoenix, Robert De Niro, Frances Conroy, Brett Cullen
Produção: Bradley Cooper, Todd Phillips, Emma Tillinger
Fotografia: Lawrence Sher
Distribuição: Warner
País: EUA / Canadá
Duração: 2h1min
Ano: 2019

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