A VIDA INVISÍVEL exalta a sobrevivência feminina ante a crueldade do patriarcado

Sabe quando temos a sensação de termos assistido a um filme que será considerado uma obra prima? Pois é exatamente assim que os espectadores de “A Vida Invisível”, do diretor cearense Karim Aïnouz, irão se sentir. A expectativa pela produção tem sido tão grande que, na abertura do 29º Cine Ceará, realizado no dia 23 de agosto, foi uma verdadeira comoção nunca antes vista no festival. Isso porque a obra foi escolhida para ser o filme de abertura do evento. Foi ainda oferecida uma homenagem especial ao diretor, com a presença da ilustríssima atriz Fernanda Montenegro. Infelizmente muitas pessoas ficaram de fora do Cineteatro São Luiz, que tem capacidade para 1.050 lugares, mesmo colocando-se cadeiras extras. 




O Cine Ceará - Festival Ibero-americano de Cinema é um festival que se diferencia de outros pelo seu caráter extremamente popular. Trata-se de um evento gratuito e aberto ao público que tem uma programação que inclui exibição de filmes de longa e curta-metragens, coletivas à imprensa com os diretores, música e encontros culturais. É um momento de celebração da arte cinematográfica aberta à participação de todos. Não é à toa que o diretor tenha escolhido o seu estado conterrâneo, e o Cine-Ceará, para exibir, em primeira mão, no Brasil, o seu filme. Além disso, a estreia em circuito nacional será apenas no final de outubro, mas em Fortaleza haverá uma estreia prévia cuja exibição ficará em cartaz no período de 19 a 25 de setembro. 

Karim chega trazendo o prêmio Un Certain Regard (Um Certo Olhar) do 72º Festival de Cannes realizado neste ano de 2019. A honraria dessa mostra paralela e que integra o festival oficial foi criada em 1978. É uma mostra que busca selecionar e premiar filmes que lançam um novo olhar para a cinematografia, seja no seu conteúdo ou na sua linguagem. E, ainda por cima, foi o filme escolhido para representar o Brasil no Oscar 2020. As indicações serão anunciadas no dia 13 de janeiro.



O filme é baseado no livro “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão”, da autora pernambucana Martha Batalha. Hoje ela reside nos EUA, mas passou grande parte da sua vida morando no Rio de Janeiro. Publicado em 2016, o livro foi inspirado em suas tias e parentes com quem conviveu nesse período no bairro da Tijuca. Ela diz que nunca imaginou que seu livro fosse virar um filme e muito menos que ganharia um prêmio tão importante.


Inicialmente, a adaptação do Karim levava o mesmo nome do livro, mas para a distribuição no Brasil, o título mudou para somente “A Vida Invisível”. Talvez porque estar sujeita a uma invisibilidade imposta não é uma condição somente à personagem Eurídice, mas também a sua irmã Guida e, por que não dizer, de todas as mulheres que ainda vivem sob o resquício de uma sociedade extremamente patriarcal. 


A primeira cena do filme é das duas irmãs sentadas em uma pedra, apreciando uma paisagem. Em seguida, uma delas se levanta e chama pela outra, dizendo para irem embora, pois vai já começar a chover. Guida sai na frente e Eurídice demora mais um pouco para se levantar. Quando vai ao encontro da irmã, não consegue encontrá-la e grita seu nome incessantemente: Guida! Guida! Esses minutos iniciais funcionam como um prólogo daquilo que acontecerá na vida das duas. As atrizes Carol Duarte e Julia Stockler interpretam de maneira sublime e visceral suas personagens, Eurídice e Guida, respectivamente. Carol ficou conhecida do público geral após sua participação na novela da Globo “A Força do Querer”, quando interpretou Ivana, que se tornou Ivan. Julia é cria da famosa escola de teatro do Rio de Janeiro, “O Tablado”, fundada em 1951 pela dramaturga Maria Clara Machado. 


As atrizes tiveram uma intensa preparação, coordenada pela catarinense Nina Kopko, que também fez assistência de direção no filme. Os exercícios incluíam escrever diários sobre a vida de suas personagens, e exercícios físicos em que os homens deitavam em cima de seus corpos e elas deveriam tentar sair debaixo deles. Além disso, durante as filmagens, elas ficaram proibidas de usar celular e só podiam falar diretamente com o diretor ou com a própria Nina. E, no set, elas eram chamadas pelos nomes das personagens.


O elenco traz ainda Gregório Duvivier; Maria Manoela, que está quase irreconhecível fazendo a cômica e experiente Zélia. Bárbara Santos, vive Filomena, que é a personagem mais incrivelmente humana da história. A escolha de Bárbara para este papel não poderia ser mais do que pertinente. A atriz é socióloga e trabalhou durante 20 anos com o diretor e dramaturgo Augusto Boal, como coordenadora no centro do “Teatro do Oprimido”. Atualmente ela mora na Alemanha e continua o seu trabalho administrando um espaço também dedicado ao Teatro do Oprimido e difusora do “Teatro das Oprimidas”, inovadora experiência estética sobre opressões enfrentadas por pessoas socializadas como mulheres.

Os atores portugueses Antonio Fonseca e Flávia Gusmão interpretam o pai e a mãe de Eurídice e Guida. Em relação a nacionalidade deles, o único porém está na compreensão dos diálogos. Para aqueles que não estão familiarizados com o português de Portugal, pode ser difícil de entender o que eles dizem. A utilização de legendas para tais cenas, talvez viessem a calhar. Mas, esse é um detalhe que não compromete a narrativa da história. E, para coroar, na parte final do filme, há a participação da sempre impecável Fernanda Montenegro, que, em poucos minutos de sua presença na tela, dilacera o nosso coração em mil pedaços. 



Vale destacar que o diretor teve o cuidado de compor a equipe de seu filme com um número considerável de profissionais mulheres, e de diferentes nacionalidades. A uruguaia Inés Bortagaray é uma das co-roteiristas, o figurino é da brasileira Marina Franco e a fotografia ficou por conta da francesa Hélène Louvart. As atrizes contam que não sabiam falar francês e nem Hélène falava português, mas que não eram necessárias palavras para que elas se entendessem. Julia conta que elas estabeleceram uma conexão apenas através do olhar, principalmente pelo fato de ser um olhar feminino sobre os corpos delas. Essa preocupação do Karim demonstra não só uma grande sensibilidade, como também respeito pelo trabalho das atrizes. Vide o resultado que está expresso na tela, principalmente em cenas como a tenebrosa lua de mel de Eurídice, que é uma mistura de comédia com horror.

“A Vida Invisível” é um filme feminino, que busca na sua forma e conteúdo, refletir sobre o que é ser mulher não só nos anos 50, mas o que é ser mulher ainda hoje. Quais os papéis que são atribuídos e os padrões comportamentais/sociais que ainda estão aí, ou que parecem estar voltando: Mulher-esposa, mulher-mãe, mulher-filha, mulher-solteira, mulher-casada. E de como o patriarcado é capaz de sufocar, inibir, reprimir e apagar mulheres por várias gerações. Mas, é também sobre conseguir sobreviver, mesmo que dentro desse universo machista, ao transformar a dor em sabedoria, amor, poesia, música, ousadia e coragem para expressar o quanto é preciso resistir perante a constante pressão que insiste em manter as mulheres invisíveis dentro da sociedade. 



Ficha Técnica

Diretor: Karim Aïnouz
Roteiro: Murilo Hauser, Inéz Bortagaray, Karim Aïnouz
Elenco: Carol Duarte, Julia Stockler, Gregório Duvivier, Bárbara Santos, Flávio Bauraqui, Cristina Pereira, Fernanda Montenegro
Produção: Rodrigo Teixeira e Michael Weber
Fotografia: Hélène Louvart
Distribuição: Sony Pictures
Duração: 2h19min
País: Brasil
Ano: 2019

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