BACURAU é a utopia revolucionária do oprimido

Nos anos 60 o Brasil viveu o período em que ocorreram fortes expressões artísticas focadas em questões sociais do país. No teatro e no cinema surgiram movimentos e metodologias que buscavam refletir sobre as condições sociais das classes proletárias.  No teatro, o dramaturgo carioca Augusto Boal revolucionou a teatrologia brasileira ao apresentar o “Teatro do Oprimido”, que se tratava de novas técnicas e jogos de cena que traziam problematizações de cunho político, ético e estético para os palcos. Da mesma forma aconteceu com o “Cinema Novo”, que teve como principal representante o cineasta baiano Glauber Rocha.


O pernambucano Kleber Mendonça Filho parece beber dessa fonte cada vez mais. Em seus primeiros longas, “O Som Ao Redor” (2012) e “Aquarius” (2016), Kleber fez uso de uma abordagem mais sutil e subliminar para falar acerca da relação existente entre aqueles que detém o poder e os que estão a ele subordinados. Em BACURAU, Kleber, juntamente com seu parceiro de direção e roteiro, Juliano Dornelles, resolve escancarar a sua repugnância sobre essa relação. O resultado é uma espécie de cangaço-futurista-fantástico. As entrelinhas e simbologias de seus roteiros anteriores ganham um sobressalto em “Bacurau”, a ponto de remeter, em alguns momentos, ao estilo da cinematografia de Quentin Tarantino.


O filme levou o respeitado prêmio do Júri no Festival de Cannes deste ano, que teve dentre o corpo de jurados o diretor grego Yorgos Lanthimos, a cineasta italiana Alice Rohrwacher, a atriz americana Elle Fanning, entre outros. E o cargo de presidente do júri foi do mexicano Alejandro González Iñárritu. 



“Bacurau” foi filmado na cidade de Parelhas, no interior do Rio Grande do Norte e os próprios moradores participaram do filme. O time de atores que compõem a obra é um fator que chama a atenção. Vai desde o repentista cearense Rodger Rogério, passando pela atriz mineira Bárbara Colen, que é formada em Direito e largou sua carreira de concursada pelo Ministério Público de Minas para ser atriz. O artista Silvero Pereira, interpreta o justiceiro Lunga. Silvero tem uma sólida carreira no teatro e encabeça o coletivo cearense “As Travestidas”, em que adota o nome de Gisele Almodóvar. A atriz paulista Karine Teles é a forasteira com intenções escusas que aparece e aguça a desconfiança da população. Depois de protagonizar “Aquarius”, Sônia Braga volta a trabalhar com o diretor fazendo o papel da médica da cidade. E há ainda, a participação do ator alemão Udo Kier, cujo personagem é revelado na metade do filme, e do qual não irei falar muito para não dar spoilers.


Essa mistura maravilhosa de nacionalidades, regionalidades e de artistas de diversos estilos faz com que a produção seja uma ode à arte. E sobre como é transcendente a capacidade dela de juntar diferentes pessoas em prol de um objetivo comum: fazer cinema.



É difícil falar de “Bacurau” sem entregar o filme, isso porque a narrativa traz diversas surpresas. É interessante observar que os moradores da cidade vivem de uma forma extremamente democrática, participativa e autosustentável. Mesmo tendo o problema da falta d’água, devido ao descaso político, eles se viram muito bem e se ajudam. O poder público nada representa para eles, da mesma forma que eles nada representam para seus governantes. Quando o prefeito da região aparece para pedir votos, todos se escondem e imediatamente transformam Bacurau em uma cidade deserta. Ele fala para ninguém, pois todos sabem que tudo que escutarão não passa de lorota de campanha. A indiferença velada é colocada de forma literal em relação ao fato de que a população ignora por completo esse tipo de autoridade. E é impossível não associarmos cenas como essa com a realidade política do Brasil de hoje, principalmente, após a fala preconceituosa do presidente Bolsonaro em relação aos nordestinos: “Daqueles governadores de paraíba, o pior é do Maranhão. Tem que ter nada com esse cara!” A designação genérica de “paraíba”, no Rio de Janeiro, é utilizada para se referir aos nordestinos que migraram para a região sudeste, explica o professor de Letras da Universidade Federal Fluminense (UFF), Dante Lucchesi, que também é referência na área de sóciolinguística.


Voltando à Bacurau, os moradores precisarão unir forças para enfrentarem uma ameaça maior, daquele que realmente comanda, ou pensa que comanda e pode destruir quem quer que seja. O “Big Brother” que tudo vê e tudo sabe, mas que subestima a força, inteligência e capacidade de resistência de qualquer outro povo. O filme de Kleber se transforma então na utopia revolucionária do oprimido.


As alfinetadas contidas no roteiro faz com que Bacurau seja um filme extremamente necessário para o momento atual, em que o cinema brasileiro está sob ameaça de censura, de cortes e de fechamento de órgãos que contribuem para o investimento de uma indústria que gera milhares de emprego. É preciso mais do que nunca que a união que vemos dos moradores dessa pequena cidade fictícia se estenda também para fora das telas. Para que possamos juntos lutar para mantermos os direitos já conquistados e outros tantos a se conquistar nas áreas não só da arte e cultura, mas de todo o contexto social do qual vivemos. Como dizia Glauber Rocha: “A arte não é só talento, é sobretudo coragem”.



FICHA TÉCNICA


Direção: Kleber Mendonça e Juliano Dornelles
Roteiro: Kleber Mendonça e Juliano Dornelles
Elenco: Bárbara Colen, Sonia Braga, Thomas Aquino, Udo Kier, Silvero Pereira, Karine Teles, Wilson Rabelo
Produção: CinemaScópio, Arte France Cinéma 
Fotografia: Pedro Sotero
Distribuidora: Vitrine Filmes
País: Brasil
Ano: 2019

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