Marcelo Gomes é pura emoção e afeto no seu documentário ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR

O grande documentarista brasileiro, Eduardo Coutinho, dizia que o seu trabalho era de registrar o movimento do tempo. O cineasta pernambucano Marcelo Gomes, complementa dizendo que o seu é de fiscalizar o tempo alheio. Em seu primeiro documentário, Marcelo reforça mais ainda o seu olhar, sempre sensível e afetuoso, sobre o ser humano.




O diretor esteve em Fortaleza/CE para divulgar o lançamento de seu mais recente filme e participou de um bate-papo com o público após a sessão. A relação afetiva dele com o Ceará se dá devido a sua proximidade com o amigo e, também cineasta, cearense Karim Aïnouz, com quem co-dirigiu um dos filmes mais belos e poéticos sobre o nordeste brasileiro, “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo” (2010).


Toritama é um município do agreste Pernambuco que faz divisa com Caruaru. Essa pequena cidade se tornou a 2ª maior distribuidora de jeans no Brasil. Marcelo relata, através da sua própria voz em off, como a cidade que ele conheceu na infância, silenciosa e com poucos habitantes, se transformou em um lugar barulhento e movimentado devido as dezenas de pequenas e grandes fábricas de jeans. É justamente sobre essa transformação que o cineasta busca em seu documentário, como ele mesmo diz: “refletir sobre essa mudança da geografia humana da cidade”. 


Grande parte dessas fábricas funcionam nas próprias casas dos moradores, que trabalham, em média, de 10h a 12h por dia, em ritmo frenético para produzirem milhares de jeans. O filme traz na montagem uma cronologia que se inicia com duas pessoas explicando o surgimento dessas fábricas, que eles chamam, curiosamente, de “facção”, e o “boom” revolucionário que elas provocaram. Tanto que, antes, as pessoas saiam de lá para buscar emprego em São Paulo e agora, ninguém mais sai, pelo contrário, pessoas de outras regiões passaram a ir para Toritama em busca de trabalho.


O filme segue acompanhando a rotina de trabalho, intercalando conversas sobre o que eles acham desse cotidiano. A surpresa está no fato de todos considerarem ótimo esse modo de trabalho, pois eles são donos de seus próprios negócios e não precisam dar satisfação para nenhum patrão. Uma jovem diz que ninguém pode reclamar, pois tem gente que vive muito pior, como em alguns países na África, onde pessoas morrem até de fome. 


A rotina de trabalho que os tornam escravos de si mesmos, está entranhada de tal forma que não percebem a ilusão de liberdade desse modo de produção. “Quanto mais eu produzo, mais eu ganho”, eles dizem. Trata-se de uma nova vertente do neoliberalismo, em que o padrão social de comportamento está diretamente associado ao padrão da economia adotada. Em Toritama, a mais-valia marxista é sustentada entre eles mesmos, que competem entre si em torno de um lucro que se baseia não no valor de produção da mercadoria, mas sim, em decorrência de uma mão-de-obra extremamente barata. 


A justificativa do título está no fato de que eles nunca tiram folga, nem férias, a não ser no período do carnaval. Nessa época, a produção frenética é interrompida, as facções fecham suas portas e todos viajam em direção às praias. “Toritama é uma China com um carnaval no meio”, assim concluiu Marcelo após a exibição do filme. Aqueles que não conseguiram dinheiro suficiente para viajar, vendem seus pertences, que inclui utensílios como geladeira, televisão, moto e o que mais tiverem de valor. Eles se desapegam completamente dos seus bens em prol do prazer de curtirem o período do carnaval. A cidade se esvazia por completo e volta a ser a Toritama da infância do cineasta, pacata e silenciosa.




Dentre os personagens apresentados, um deles chama a atenção, o Léo. Um rapaz de 32 anos cuja primeira cena em que aparece está dormindo encostado em um amontoado de calças jeans. Além de trabalhar na produção do jeans, Léo também está ajudando na construção de uma nova casa/fábrica, sob a promessa de trabalho assim que ficar pronta. Enquanto carrega tijolos e prepara a argamassa, Léo reflete sobre a vida e sobre como o dinheiro é a causa de todos os males humanos. Marcelo diz que o Léo, com certeza, seria um filósofo da anacronia. E é justamente com o Léo que a equipe do filme resolve deixar uma câmera para que ele e a família possam registrar esse momento único de lazer durante o carnaval. Com essa atitude, Marcelo demonstra respeito e humildade pela temática abordada. Em um filme sobre trabalho, pessoas, vida e sobre humanidade, melhor ainda é perceber a dignidade com a  qual tais assuntos são apresentados pelo seu autor.


Ficha Técnica
Direção: Marcelo Gomes
Gênero: documentário
Ano de produção: 2018
Distribuição: Vitrine Filmes
Duração: 85 minutos
País: Brasil

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