O verdadeiro inimigo está dentro de NÓS


É a partir dessa premissa psicológica que o diretor e roteirista Jordan Peele se aprofunda e personifica o lado sombrio que existe dentro de cada um.



Depois de levar o Oscar de Melhor Roteiro Original por “Corra” (Get Out, 2017), onde apresentou uma história de terror de caráter expressivamente social/racial. “Nós” (Us, 2019), sua mais recente produção, Peele vai além da questão racial para tocar na ferida do “sonho americano” e por que não dizer da própria América.

O filme começa com letreiros informando que existem milhares de antigos túneis desativados por todo o país. E que ninguém sabe ao certo quem os construiu e nem por qual motivo. Em seguida vemos uma TV exibir uma propaganda de uma campanha contra a fome nos EUA, na qual a logomarca é o mapa do país e bonequinhos de mãos dadas. Essa referência visual será justificada na parte final do filme.

Só para enfatizar que por mais que pareça spoiler tudo que virá no texto a seguir, tais informações se fazem presente no trailer, portanto, não há surpresas para a explicação do título do filme.


O ano é 1986 e, durante a noite, um casal passeia com sua filha de 9 anos, Adelaide, por um parque de diversões. A esposa parece não estar muito feliz com o marido e a filha é quieta e bastante observadora. Em um dado momento, a mãe de Addy vai ao banheiro e pede para o pai ficar de olho nela. E é claro que ele não fica. A filha então sai andando pelo parque sozinha. Usando uma blusa de “Thriller”, de Michael Jackson, com uma maçã do amor bem vermelha na mão, Addy desce e vai até à praia onde está situado o parque. A plasticidade desta cena ambienta o que irá acontecer em seguida, sem falar no sentimento nostálgico das referências utilizadas. Addy se depara com a atração “Vision Quest”, que é uma soturna sala de espelhos, que tem sua entrada voltada para a areia da praia. Ela vê seu reflexo nos múltiplos espelhos da sala, até que ao se virar de frente para um deles, ela se vê de costas, para em seguida a menina no espelho virar de frente para ela. Addy fica completamente aterrorizada ao perceber que ali não era o seu reflexo, mas sim uma outra menina idêntica a ela.

Este é o prólogo do filme, que depois passa para a época de hoje em dia, com Addy adulta (Lupita Nyong’o), casada com Gabe (Winston Duke) e dois filhos, Zora (Shahadi Wright Joseph) e Jason (Evan Alex). A família está viajando de carro até a casa de veraneio para passar suas férias. O detalhe é que a casa de veraneio é no mesmo lugar onde Addy vivenciou o episódio na sala dos espelhos.


Tudo parece relativamente tranquilo, até que pequenas coincidências a fazem relembrar daquele episódio. Isso faz com que acabe contando para o marido o episódio de quando era criança e o quanto está sendo difícil estar naquele lugar novamente. E ainda, o quanto sente que aquela garotinha pode vir atrás dela a qualquer momento. Depois disso, cai a luz e Jason diz que tem uma família na frente na casa. A família em questão é, na verdade, uma versão sombria de cada um deles e querem matá-los. É curioso observar o sentido simbólico da arma utilizada pelos sósias ser uma tesoura, cuja engrenagem funciona com a junção de duas peças iguais. Vale ainda destacar a incrível atuação de Lupita que, em alguns momentos, faz parecer que é uma outra atriz que faz a sua sósia.

Confrontar-se pode ser algo aterrorizante. O diretor consegue concretizar essa experiência de forma visceral e assustadora, pois o que eles (os sósias) querem não é apenas assustar, e sim tomar seus lugares. Retirá-los de sua comodidade, eliminá-los e mostrar um lado que eles não querem ver.
Inicialmente, parece que este confronto está acontecendo somente com Addy e sua família, mas aos poucos vai sendo revelado que outras pessoas também estão passando por isso. A partir daí, compreendemos que o roteiro de Peele é muito mais abrangente do que a proposta de “Corra”. A crítica é em um nível mais íntimo e profundo. Não só no contexto do lado sombrio de cada um de nós, mas também de uma nação, no caso, os EUA.


Lupita conta que em uma de suas conversas com o diretor, ele lhe disse que um dos temas que lhe interessava era explorar a ideia de que um dos maiores defeitos da América é ser incapaz de reconhecer seus próprios demônios. Do quanto é difícil para os americanos esse processo de conceber a existência do lado destrutivo no país.

Nesse sentido, essa história funciona como uma forte analogia a ilusão do sonho americano, do “american way of life”, da realização das conquistas tão almejadas de ser “o vencedor” por ter um carrão, uma casa de luxo, um barco e uma família feliz. Enquanto para outros, tudo que resta é viver nas sombras, às margens desse mundo consumista, onde tudo parece perfeito e maravilhoso. Um dado demográfico de 2018 dizia que mais de meio milhão de americanos iriam ficar sem suas casas. E, inclusive, foi descoberto que muitos moradores de rua vivem nesses túneis desativados. Eles não conseguiram, por algum motivo, preencher os requisitos daquilo que se acredita ser a existência de uma vida plena. Por isso lhes foi imposto a obscuridade e a invisibilidade. Afinal, não há espaço na sociedade americana para os “losers”. E, com a virada final do filme, Peele reforça que para viver o sonho americano vale tudo, inclusive abdicar de si mesmo.


FICHA TÉCNICA

Direção e Roteiro: Jordan Peele
Elenco: Lupita Nyong’o, Winston Duke, Shahadi Wright Joseph, Evan Alex, Elisabeth Moss
Produção: Jason Blum, Ian Cooper, Jordan Peele, Sean McKittrick
Fotografia: Mike Gioulakis
Distribuição: Universal Pictures
Duração: 1h56min
Ano: 2019
País: EUA

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