A sutil força do feminino em “As Herdeiras”


A crise de um casal de mulheres de meia idade é o tema da produção paraguaia “As Herdeiras”, que foi premiado no Festival de Berlim em 2018 como “Melhor Filme pela Crítica FIPRESCI”, e ainda o “Urso de Prata de Melhor Atriz” para Ana Brun.


O filme começa com a câmera em subjetiva, espiando, pela fresta de uma porta, uma mulher olhando os objetos da casa e perguntando o preço, enquanto uma outra responde o valor. Aquela que observa é Chela (Ana Brun), que prefere não aparecer e nem participar dessas negociações. Este comportamento de somente olhar de longe também se estende para sua vida pessoal, que é, basicamente, de ser servida e conduzida por Chiquita (Margarita Irun). É Chiquita quem organiza e cuida de tudo, desde o café da manhã, que é levado, todos os dias, em uma bandeja até o quarto, e também as compras necessárias de supermercado. 

Inicialmente, o roteiro não fornece muitas pistas da relação pessoal das duas. Pode-se pensar que elas são irmãs. Aos poucos, vamos percebendo que se trata de um casal. E, aos poucos também, vamos compreendendo o motivo da venda dos objetos da casa. Chiquita tem uma dívida que precisa ser paga com uma certa urgência, caso contrário poderá ser presa. 


A relação das duas é daquelas que já está enrijecida pelo tempo. Elas conhecem muito bem a personalidade uma da outra e sabem como lidar. Chela é sensível, quieta, talvez um pouco depressiva. Chiquita é prática, animada e proativa. A casa em que vivem é da família da Chela, bem como os objetos que ali estão. Em um dado momento, ela demonstra não estar muito satisfeita com o fato de estar vendendo as coisas da sua família. Mas, também não aceita ajuda das amigas, que se dispõem oferecendo uma “vaquinha”. É aquilo, né? Casar não é compartilhar somente os bens, mas também as dívidas, no entanto, Chela não parece muito feliz com essa ideia.

Como a dívida não consegue ser quitada, Chiquita acaba tendo que cumprir pena na prisão. A partir desse momento, Chela parece se desesperar, afinal, sempre foi a sua companheira quem tomou a frente de tudo. Mas, é claro que, mesmo sendo apenas por alguns meses, Chiquita deixar tudo preparado para sua ausência. Uma empregada é contratada e orientada sobre a forma como as coisas devem ser feitas dentro da casa, e é óbvio, para que também agrade Chela. Esta, por sua vez, terá que se adaptar a uma nova rotina no auto dos seus 60 e pouco anos. E só poderá visitar Chiquita na prisão duas vezes por semana.


O que chama a atenção na cadência narrativa do filme é o fato das emoções vivenciadas pelas personagens se apresentarem sempre de maneira muito contida, “quase invisível”, como é dito pelo próprio diretor e roteirista, Marcelo Martinessi, em uma entrevista. Afinal, tudo que é sentido não precisasse ser, necessariamente, mostrado. Ele ainda complementa dizendo que o recorte escolhido foi de mostrar uma determinada classe social burguesa. E talvez, por isso, temos a sensação de que há uma melhor aceitação no que diz respeito a sexualidade das duas companheiras. Além, é claro, e como já é de praxe, ocultar e não assumir os problemas financeiros dos quais estão passando.

Martinesse conseguiu elaborar um roteiro onde tudo acontece com uma enorme naturalidade. Uma grande parte disso se deve aos trabalhos excepcionais das atrizes em cena, principalmente de Ana Brun, cuja personagem passa por uma considerável curva dramática. A grandeza da sua atuação está justamente na sutileza com que ela se expressa através do olhar e respiração.

 
Outro fator relevante do filme é a ausência completa de personagens masculinos. Essa é uma história de mulheres: O casal, a amiga, a vizinha, a empregada, a cobiça por outra mulher. Enfim, tudo é feminino. São elas, e somente elas, que conduzem a história. O diretor conta que, dentro dos parâmetros culturais paraguaios, os homens, geralmente, são criados para serem aqueles que têm todas as respostas, que devem tomar as decisões, em preterimento às mulheres. Porém, ele nunca gostou de estar nesse papel. Então, quando pensou em contar a história de seu filme, fez questão de não colocar protagonistas masculinos, pois ele queria justamente questionar essa cultura machista e patriarcal. Cultura essa que todos nós, homens e mulheres, somos herdeiros e herdeiras.


Ficha Técnica:

Direção e Roteiro: Marcelo Martinessi
Elenco: Ana Brun, Margarita Irún, Ana Ivanova
Produção: Sebastian Pena Escobar, Christoph Friedel, Fernando Epstein, Agustina Chiario, Julia Murat, Hilde Berg, Marina Perales, Xavier Rocher
Fotografia: Luis Armando Arteaga
País: Paraguai, Alemanha, Brasil, Uruguai, Noruega e França
Duração: 95 minutos
Distribuidora: Imovision
Ano: 2018

Comentários