"...Na casa de meu Pai há muitas moradas; se não fosse assim, eu vo-lo
teria dito. Vou preparar-vos lugar. E quando eu for, e vos preparar lugar,
virei outra vez, e vos levarei para mim mesmo, para que onde eu estiver
estejais vós também...”
João 14:2,3
Essas e outras referências
bíblicas estão inseridas no filme “Mãe!” (Mother!),
cuja personagem interpretada pela atriz Jennifer Lawrence vive um relacionamento
com um poeta (Javier Bardem) em uma grande casa que é invadida constantemente
por estranhos.
A mistura de doutrinações
religiosas com elementos que remetem uma preocupação ecológica são temas
recorrentes na filmografia do diretor norte-americano Darren Aronofsky. Em “Pi”
(idem, 1998), seu primeiro longa, ele
conseguiu formular uma teoria entre a matemática e a cabala judaica; Já em “A Fonte
da Vida” (The Fountain, 2006)
apresenta uma ficção científica que se volta para a filosofia budista; E em “Noé”
(Noah, 2014), se debruça sobre essa
figura bíblica que salvou o processo de desequilíbrio ecológico do planeta.
Contudo, foi com “Cisne Negro” (Black Swan, 2010) que Aronofsky alcançou
o sucesso pleno de crítica e público. Além, é claro, de conseguir melhorar sua
relação com os estúdios de Hollywood. Inclusive, se deu ao luxo de ousar e
produzir uma obra que não agradou o público americano. Talvez porque, como ele
mesmo disse, no trailer de “Mãe!” deveria constar os seguintes dizeres: “esse
não é um filme de terror, mas ferra a sua mente”.
O filme abre com a imagem do
rosto de uma mulher em chamas. Em seguida vemos uma casa destruída por um
provável incêndio e que, aos poucos, vai sendo reconstruída como num passe de
mágica. A sujeira e o negro das cinzas somem e tudo volta a ficar limpo e
renovado. Uma pessoa deitada que parecia ter sido chamuscada enquanto dormia em
sua cama, também apresenta seus lençóis limpos novamente. Tudo como se fosse um
grande rewind de algum grave acidente
incendiário. A mulher que parecia estar morta, revive, e sua mão toca o espaço
vazio ao lado da cama. Ela se levanta e chama por ele: “Baby!” A partir daí, a
história se inicia dentro dessa casa, cujo casal; ela, uma jovem dedicada e
apaixonada; e ele, um poeta em crise de inspiração, vivem em um lugar isolado e
distante das grandes cidades.
A relação da jovem esposa com o
cuidado da casa é algo extremamente orgânico. Ela toca as paredes e olha fixo
para elas. O seu olhar adentra o concreto e a madeira, fazendo que a enxergue
como um organismo vivo e pulsante. Toda essa dedicação é por respeito e amor a
ele. Ela é feliz assim, dando o seu melhor empenho para que ele consiga trabalhar
nas suas criações poéticas de forma tranquila. Tudo vai bem, até que um homem
(Ed Harris) estranho bate à sua porta e acaba sendo convidado pelo poeta a ficar
ali junto com eles. Depois surge a esposa do homem (Michelle Pfeifer), que
também fica na casa. A estadia do casal de estranhos faz com que ela fique bastante
incomodada, não somente com a presença deles, mas também com o fato dele
permitir que esses dois estranhos ocupem a casa que moram e que ela cuida com
tanto zelo.
O filme contém diversas analogias
e metáforas, e essas vão tomando cada vez mais forma à medida que a narrativa avança.
A personagem de Jennifer Lawrence é uma mulher que, ao primeiro olhar, pode
parecer submissa e que desempenha o papel de apenas tomar conta da casa e do
marido. Porém, aos poucos, vamos entendendo que ela simboliza algo maior, assim
como a casa e o seu amado poeta. Mais para o final do filme, fica mais claro o que
a personagem dela representa: seria a Mãe-Natureza. E ele seria o próprio
Criador, ou Deus. Aronofsky propõe personificar essas duas entidades e os
coloca em um embate, onde é possível vermos tudo que ela (a natureza) sofre e
sente perante os abusos das pessoas que destroem o lar que habita, no caso o
planeta Terra, a sua casa.
Há também diversas referências de
passagem da Bíblia, como a história de Caim e Abel, do livro Genesis. Os filhos
do casal estranho (Ed Harris e Michelle Pfeifer) aparecem na casa procurando
pelos pais e um está com inveja do outro porque encontrou o testamento do pai,
dizendo que deixaria mais coisas para um dos filhos. Então, um irmão acaba matando
o outro.
Em outra cena, no momento final,
podemos considerar que ela também representa uma personagem bíblica. Maria, mãe
de Jesus. Principalmente, na cena que o seu filho é roubado de seus braços e
entregue por Ele às pessoas que ali passam a ficar na casa. É uma cena muito
forte e simbólica. Um bebê sendo passado de mão em mão até ser morto,
dilacerado e os pedaços do seu corpo serem comidos por todos. Uma referência
clara ao catolicismo e ao ritual antropofágico da comunhão quando se “come” o “corpo” de
Cristo. Ele ainda pede que ela perdoe pelo mal que todos fizeram ao seu filho.
Definitivamente, esse é o filme
mais autoral de Aronofsky, e, mesmo que tenha causado divisão de opiniões, é
inegável dizer que se trata de uma obra ousada, complexa e intrigante. Não é à
toa que a artista Marina Abramovic postou em sua página no Facebook um texto
direcionado ao diretor:
Querido Darren,
Vi algumas críticas de "MÃE!" e uma delas disse que era o
pior filme do ano. Eu só quero lhe dizer minha opinião: eu fiquei muito
emocionada com este filme. Os atores que você escolheu são incríveis e o som é
muito inovador.
Na minha vida, meus primeiros trabalhos dos anos 70, foram destruídos
quando ficaram prontos. Eu era tão mal avaliada pela crítica, mas agora aqueles
mesmos trabalhos são considerados "históricos" e
"pioneiros". Você teve a coragem de expor o lado mais sombrio da
natureza humana e do amor incondicional. Quando você não tinha mais nada para
dar, você arrancou seu próprio coração. Esse filme é tão complexo com tantos
níveis. Acho, se não esta geração, que a próxima entenderá. Uma boa obra de
arte tem muitas vidas.
Com amor,
Marina
FICHA
TÉCNICA:
Direção e Roteiro: Darren Aronosfsky
Elenco: Jennifer Lawrence, Javier Bardem, Ed
Harris, Michelle Pfeifer
Fotografia: Matthew Libatique
Produção:
Darren Aronosfsky, Scott Franklin, Ari Handel
Distribuição:
Paramount
País:
EUA
Duração:
121min
Ano:
2017
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