Mia


O filme escrito e dirigido pelo ator argentino Javier Van de Couter, foi exibido no 20º Festival Mix Brasil de Cultura e Diversidade, que acontece todo ano em São Paulo e no Rio de Janeiro, sendo que levou, este ano, o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro. A produção também recebeu o prêmio de Melhor Direção no 30º Festival Internacional de Cinema de Havana.

A personagem-título do filme não está presente de forma visível. O que sabemos dela está contido nas suas próprias palavras que são lidas, inicialmente, por Ale, um travesti que trabalha catando papelões nas ruas de Buenos Aires. Ale recolhe uma caixa jogada no lixo e nela encontra um diário e outros itens que pertenciam a Mia. A partir daí, ela passa a se envolver de uma maneira extremamente emocional com a vida que está ali relatada pela sua autora. Ao mesmo tempo, também nos é apresentado o contexto de vida de Ale, que mora em uma espécie de favela/comunidade, chamada Aldeia Rosa, onde vivem ali vários outros travestis. Além disso, notamos também a presença de uma pequena equipe de cinema que perambula pelas redondezas da favela. Eles conversam com os moradores a respeito de um documentário que pretendem fazer. Percebemos assim, que o filme, em alguns momentos, se mistura ao próprio documentário que está inserido na sua narrativa ficcional. Mesmo sabendo que o documentário faz parte da ficção, é interessante observar como a própria narrativa se questiona. Não só pelo fato de que os personagens travestis, realmente o são, nos dando assim uma impressão bastante real em relação aos sentimentos por eles expressados. Como também pelo fato de que descobrimos, quando sobem os créditos finais, que a tal Aldeia Rosa realmente existiu e foi dizimada pelo governo argentino, em 1997.

Em paralelo a questão social e humana dos travestis, conhecemos a história de Mia, que nos é apresentada através do que ela própria escreveu em seu diário pessoal. Ao ler suas palavras, Ale parece ser a única a compreendê-la e não julgá-la pelas atitudes e pensamentos que teve em relação a sua família. Principalmente no que diz respeito a sua pequena filha, Julia, que convive de forma bastante difícil com o pai, vivido por Rodrigo de La Serna (companheiro do jovem Che Guevara, em “Diários de Motocicleta”, 2004). Ele não consegue lidar com a perda da esposa e bebe diariamente, o que de nada ajuda no seu relacionamento com a filha. Enquanto isso, Ale vai se aprofundando cada vez mais no diário de Mia, até que resolve se aproximar de Julia e fazer amizade com a menina. Ela consegue, por fim, trabalhar na casa e se inserir por completo no contexto ao qual foi se familiarizando através do texto contido no diário. Notamos que o desejo de Ale em ter uma vida normal, com uma casa, uma família, “de ser quem ela quer ser”, como ela mesma diz, nos referencia do peso que se tem quando se é excluído socialmente. Afinal, seja a exclusão de qualquer tipo, fica evidente quanto o ser humano fica privado daquilo que lhe é inerente no seu direito mais básico como um cidadão existente, e presente, dentro de qualquer contexto social. E ao mesmo tempo, percebemos também o quanto a mãe de Julia não estava preparada para exercer tal função. Em um dado momento do seu diário, ela diz: “Mãe inexperiente procura substituta”. E Ale, parece querer atender tal solicitação. Esse momento me fez lembrar do filme “Precisamos Falar sobre Kevin” (We Need to Talk About Kevin, 2012), em que a personagem de Tilda Swinton também demonstra não ter nenhuma aptidão para cumprir o papel de mãe.

O recurso de usar um personagem principal que não aparece, funciona muito bem para o contexto do filme, uma vez que ilustra, de forma quase que metalinguística, a ausência de Mia na vida de sua filha. Hitchcock já havia feito tal uso de recurso no cinema, quando dirigiu a adaptação do livro de Daphne Du Maurier em “Rebecca, A Mulher Inesquecível” (Rebecca, 1940), cujo protagonista também não aparece. Ela é construída a partir do que os outros personagens falam sobre sua personalidade. Rebecca é apresentada de uma forma um tanto quanto não muito confiável, digamos assim. Isso porque essa é justamente a intenção, para que possamos nos surpreender com a guinada do filme. Já em Mia, conseguimos perceber a sua personalidade através do que ela mesma diz. É através do conteúdo de sua própria escrita que passamos a conhecê-la e definimos o seu perfil.

Mia revela ser uma pessoa que optou por se autoexcluir não só de sua vida familiar, como da vida por completo. E assim, é possível interpretar que o filme aborda o tema da exclusão de uma forma mais abrangente. Ou seja, além da visível e óbvia exclusão e preconceitos sociais sentidos pelos travestis da Aldeia Rosa, temos do outro lado uma protagonista que é igualmente incompreendida e profundamente julgada por todos, com exceção de Ale. Isso porque ela resolveu lidar com seus conflitos internos da forma que achou ser a mais correta dentro daquilo que sentia. Quando Julia pergunta para Ale o motivo pelo qual ela fala e se veste como mulher, esta responde: “porque é como me sinto”. Essa mesma resposta poderia ser a de Mia para o fato de não conseguir se expressar como uma mãe-esposa pertencente a uma família. O que está contido no íntimo de cada um é algo que pulsa tão forte, que não pode ser controlado ou encoberto por muito tempo, porque faz parte do que se é e do que precisamos para nos tornarmos completos. Coisas como preconceitos e julgamentos não passam de uma enorme ignorância pretensiosa. São apenas uma vã e inútil tentativa de enquadrarmos o que é certo e errado sob um parâmetro extremamente simplista dentro da imensidão indefinível que é a complexidade humana. Espero que o filme entre em circuito aberto para que consiga um alcance maior, e não fique restrito, e quase que também excluído, de um público ainda mais diversificado.

Comentários

Anônimo disse…
Larissa... Que legal a sua abordagem da sétima arte. E o filme mencionado parece ser muito interessante. A maneira como você o descreve, o seu entusiasmo e a riqueza de detalhes nos deixam curiosos e motivados a assistir. Parabéns também pelo estilo do blog. As películas que ilustram os posts são também de ótimo tom... Gostei muito, muito mesmo deste espaço. Abraço amigo. Cuide-se bem.
Mara faturi disse…
Ahhh!! Larissa, eu tô doida para assistir MIA;)
PÔOOO, vc escreve muito bem...sendo poesia ou prosa...e que rico este teu universo interno menina!!! Me ilumino de encantos;))
Bjo!