Dois filmes que podem ser considerados estranhos e com temas idem.
Assistidos em duas sessões seguidas. Primeiro a produção
australiana, Beleza Adormecida (Sleeping Beauty, 2011), escrita e
dirigida pela estreante Julia Leigh. Tanto no trailer quanto no
cartaz há os seguintes dizeres: “Jane Campion apresenta”. Com
certeza, a renomada diretora de O Piano (The Piano, 1993), contribuiu
de alguma forma para o filme, apesar de seu nome não aparecer nos
créditos, só mesmo na parte de “a very special thanks”. O
filme seguinte foi o holandês Movimento Browniano (Brownian
Movement, 2010), da também diretora e escritora Nanouk Leopold,
sendo este é o seu primeiro filme falado em inglês (e francês). Os
anteriores eram falados em holandês. O que podemos chamar de estranheza está tanto na forma como no
conteúdo das duas histórias. Ambos possuem em comum a abordagem que
cerca aquilo que podemos considerar como um certo tipo de fetichismo.
No entanto, o objeto de fetiche, no caso dos dois filmes, é o
próprio ser humano.
Beleza
Adormecida é estrelado pela atriz Emily Browning, conhecida por
filmes mais comerciais como Desventuras em Série (A Series of
Unfortunate Events, 2004) e Sucker Punch (idem,
2011). Aqui ela vive Lucy, uma estudante universitária que trabalha
em vários lugares para conseguir se manter financeiramente. Dentre
seus empregos, está o de ser também uma garota de programa. Ao ver
um anúncio no jornal, ela acaba entrando em mais um trabalho que
oferece tal tipo de serviço, no entanto, com um público mais
específico, o de senhores de idade extremamente ricos. Uma das
vontades desses senhores é de fazerem uso de sua presença
enquanto ela estiver dormindo. Lucy aceita tal condição e é dopada
pela sua agente em uma mansão de luxo, permitindo assim que esses
senhores façam o que quiserem com o seu corpo adormecido. O filme
possui um tom frio e apático, seja pela fotografia, ao fazer uso de
cores em tons pastéis, seja pela interpretação de Emily, com sua
pele muito branca e o seu ar indiferente. Vale ressaltar e elogiar o
alto grau de concentração da atriz para as cenas em que os homens a
“usam” enquanto dorme. A diretora traz algumas referências
de outros diretores para o seu filme. É possível perceber influência de Luis Buñuel e Stanley Kubrick, com o seu De Olhos
Bem Fechados (Eyes Wide Shut, 1998), principalmente na cena do
requintado jantar servido à inglesa por moças de lingerie.
O título da produção Movimento Browniano está relacionado a um
tipo de movimento de partículas detectado pelo botânico escocês
Robert Brown, em 1827, ao analisar grãos de pólen de flores. Ele
percebeu que ao serem colocados na água, essas partículas se
movimentavam de maneira aleatória e incessante. Incialmente ele
achou que tal movimento fosse provocado por algo que considerava como
força vital, ou seja, uma força proveniente dos seres vivos. No
entanto, observou que tais partículas também adquiriam esse mesmo
movimento em coisas inanimadas, tais como cinza, quartzo e cobre. O
seu estudo desencadeou uma série de outros trabalhos que vieram a
ser utilizados e aprimorados por vários outros pesquisadores, até
mesmo, o então ainda desconhecido jovem Albert Einstein. No caso do
filme, tal teoria física se faz presente em sua personagem
principal, uma médica que sente um forte impulso de fazer sexo com
os pacientes do hospital em que trabalha. A aleatoriadade desse seu
impulso está no fato de que ela escolhe qualquer tipo de homem:
peludos, carecas, gordos e até mesmo velhinhos. Ela se mostra
completamente fascinada por tais idiossincrasias de cada um desses
homens, chegando a lembrar o tipo de fascínio da fotógrafa Diana
Arbus, que está muito bem retratada no filme A Pele (Fur, 2006), de
Steven Shainberg.
O filme é narrado divido em três partes. Na primeira, somos
apresentado a questão sexual impulsiva da médica, que é casada e
tem um filho pequeno. A segunda parte, é quando todos descobrem o
que está acontecendo, inclusive o seu marido. Ela passa a
frequentar sessões de terapia com uma analista. Ainda bem que o
próprio filme não se prolonga em tal questão, pois acredito que nenhuma obra
deva se autoanalisar e/ou se justificar, e sim deixar isso para seus
espectadores. E na terceira parte, vemos a tentativa de superação
de tal acontecimento.
A questão levantada pelos dois filmes está ligada ao impulso
sexual/comportamental versus ao que é considerado aceitável/moral
pela sociedade. “Aqui não há nada do que se envergonhar. Ninguém
irá julgá-lo.”, diz a agente de Lucy para os seus idosos clientes,
em Beleza Adormecida. Essa fala também funcionaria para a médica de
Movimento Browniano, que aluga um apartamento só para receber os
seus pacientes e fazer sexo com eles. A vergonha não está no
impulso sexual em si, mas sim no medo da descoberta e da não
compreensão dos olhares alheios. Até porque não há a intenção
de que isso seja revelado. Tal assunto também foi abordado em um outro filme recente, Shame (idem, 2011), do diretor Steve McQueen (sim, ele tem o
mesmo nome do ator), cujo personagem principal é completamente
obcecado por sexo em suas mais váriadas formas. No entanto, faz uso disso de uma maneira, digamos, mais sociável, mas nem por isso menos incomum, devido a sua frequência.
Todos esses momentos vividos por esses personagens nos mostram a importância e o grau de necessidade que tais momentos lhes proporcionam. Trata-se de algo que está entranhado no íntimo de
suas essências. O que eles fazem, o fazem para si próprios, para
saciar algo que se move dentro deles de maneira incessante,
incontrolável e inexplicável, assim como as partículas do pólen
de Robert Brown. Os seres humanos são dotados de uma complexidade
que abrange uma amplitude imensurável e que deveria ser vista de uma perspectiva igualmente vasta. Afinal, todos nós somos repletos de
contradições, imperfeições, conflitos, diferenças, tensões,
impulsos e instintos. É isso que nos torna únicos e nos define como
criaturas com uma alta capacidade de transformação e reflexão
sobre si mesmos. O que talvez precisamos fazer seja uma reavaliação
na forma como negamos, negligenciamos e julgamos a existência de tais impulsos. Quem sabe assim se torne mais simples lidar e aceitar que eles fazem
parte e estão presentes nas nossas vidas. E aí nos possibilite uma melhor maneira de elaborá-los e canalizá-los, para que por fim nos sintamos mais livres dentro do
corpo que habitamos.
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