Precisamos falar sobre Kevin



"Só porque nos acostumamos com algo, não significa que gostamos daquilo".
(Kevin, para a mãe, aos oito anos de idade)

O filme começa com uma fusão entre uma cena de uma cortina branca para um plano em zenital de uma multidão coberta por uma textura vermelha. Aos poucos percebemos que se trata da Tomatina, tradicional festa de guerra de tomates que acontece na Espanha. Em seguida vemos Eva (Tilda Swinton), sorridente e feliz, sendo levantada e carregada por vários braços que a largam em cima de uma poça de polpas de tomates. Pode-se dizer que tal cena funciona como um prelúdio para aquilo que ainda virá a acontecer na vida de Eva, ao relacionarmos o vermelho dos tomates com sangue.

A partir daí as cenas que se seguem vão aos poucos ganhando ritmo. A montagem ocorre dentro de três tempos narrativos diferentes: um no presente e dois tempos no passado. Destes dois, um quando Eva ainda se considerava uma mulher livre e o outro a partir do momento em que fica grávida de Kevin. A marcação desses três tempos está muito bem estruturada no filme, que faz uso de fusões sonoras e mudança de cenas que se interligam entre si e ao mesmo tempo se delimitam. Por exemplo, uma cena em que mostra várias mães na porta da escola e uma delas grita. Na cena seguinte, o grito da mãe se mescla com o grito de Eva no momento do parto. São duas cenas que estão em tempos narrativos diferentes e que se interligam através do som do grito das duas mães.

Além da montagem, a também excelente interpretação de Tilda Swinton nos faz perceber as mudanças provocadas em sua a vida dentro desses diferentes tempos. A escolha para o papel de Eva não poderia ser melhor. A inglesa Katherine Matilda Swinton possui um rosto que podemos considerar estranho, atípico e asssexuado. Não é à toa que se tornou conhecida quando atuou interpretando Orlando, na adaptação feita para o cinema em 1992 da obra de Virginia Woolf. No filme "Orlando, A Mulher Imortal", ela vive um personagem ora masculino, ora feminino que viveu durante quatrocentos anos. E ela funciona muito bem como Eva, por se tratar de uma personagem que demonstra desde o momento em que fica grávida não possuir nenhum tipo instinto materno. A visão do corpo de Tilda com uma enorme barriga, somado a sua expressão peculiar, contribui para que também consideremos tal imagem estranha. E sentimos claramente que ela não está nem um pouco à vontade com sua gravidez. Quando Kevin nasce, as coisas só pioram. Ele é um bebê que chora incessantemente, demora a falar e aos oito anos de idade ainda usa fraldas. Ou seja, como se não bastasse o fato de Eva não ter o "dom natural" de ser mãe, Kevin é uma criança extremamente problemática e que apresenta um certo desprezo por ela.

A trilha sonora é outro elemento interessante no filme, que provoca um contraste de sensações. A tensão crescente dentro da narrativa nos faz crer que algo muito ruim irá acontecer. No entanto, não há em nenhum momento uma trilha de suspense, pelo contrário, as músicas tocadas são, na maioria, de estilo folk e/ou com melodias lentas, alegres e até engraçadinhas. Ou seja, nada que remeta a um clima sombrio ou de horror.

O roteiro do filme é uma adaptação do livro homônimo da autora americana Lionel Shriver, que em 2005 ganhou o prêmio inglês de literatura, Orange, por Melhor Romance do Ano. O enredo acontece através de cartas escritas por Eva ao marido, não mais presente, que no filme é vivido pelo, também excelente, ator John C. Reilly.

Tanto o livro quanto o filme geraram polêmicas por levantarem algumas questões que não são muito discutidas, ainda mais de uma forma tão crua e sem sentimentalismos. Por exemplo, o fato de que nem todas as mulheres possuem instinto maternal ou querem ser mães. E ainda o fato de que pode sim haver uma ausência de amor entre pais e filhos. Afinal, o vínculo genético não é um fator comprobatório de que haja necessariamente uma relação de amor entre pessoas da mesma família. E ainda, a crueldade, o sofrimento e as triztezas fazem parte da vida tanto quanto a felicidade e as alegrias. O filme consegue não aplicar um juízo de valor para tais fatos e acontecimentos. Ele simplesmente os mostra como coisas que ocorrem. Não há explicações ou respostas. Devido a fatores culturais, educacionais, religiosos, etc, somos levados a pensar que os sofrimentos, tristezas, crueldades devam ser percebidos como abominações e anormalidades. No entanto, tudo isso faz parte da natureza humana, assim como as alegrias, bondades, caridades. Os sentimentos nos provocam sensações que podem nos trazer um certo peso ou leveza, no entanto, talvez não devêssemos aplicar a eles valoração boa ou ruim. O sofrimento, por exemplo é um sentimento pesado, todavia, é através dele que crescemos e aprendemos mais sobre nós mesmos e os outros. Tudo acontece porque faz parte da vida e se estamos vivos e não podemos impedir os acontecimentos que nos trazem peso, então é preciso saber lidar com eles e encará-los de uma forma diferente de como geralmente encaramos. Isso fica bem claro na cena final do filme. Eva é uma mulher que consegue, mesmo depois de tantas tragédias cercando sua vida, ter uma visão iluminada a respeito de tudo e seguir em frente à espera de novos acontecimentos.

Comentários

Thais disse…
Ei Lari,

Esse filme eu vi, eeeeee !!!! Tinha lido o livro e fiquei curiosa. Já tinha tido uma aula em que alguns professores comentaram o caso e adorei o filme! Mais ainda adorei seu relato sobre ele! Parabéns!

Beijos
Mulher Vã disse…
A melhor critica que li sobre esse filme!

Voce sabe falar da historia sem ser estraga prazeres, eu li rapidamente a sinopse quando baixei, mas se tivesse olhado por aí antes de assistir, teria perdido a graça. Claro que isso só serve pra quem não conhece o livro, como eu.
Voce escreve com conteúdo e aguça a curiosidade de quem te ler! Muito bom.

Destaco a cena em que o Kevin não para de chorar, e ela para com o carrinho numa construção, acho que tem uns caras furando a rua, e sente alívio por aquele som abafar os gritos do muleque!
O interessante são as perguntas que o filme nos deixa matutando: será que se ela gostasse de ser mãe, ele seria melhor?

Tilda é foda!
Voce é foda!

Beijo

Vã.
Ouvi falar desse filme há um tempo e me deu muita vontade de assistir por saber que Tilda era a protagonista, mas também porque é o primeiro filme/livro que vejo tratar de forma aparentemente interessante e amoral o fato de que a maternidade superestimada, que as tragédias familiares são recorrentes quantos as famílias e que tais tragédias são tão silenciosas quanto a vergonha imposta pelo senso-comum. Tua resenha foi excelente e espero que o filme também seja. Concordo tuas considerações finais e acho que, se os escritores e cineastas fossem mais amorais e menos medrosoos, a arte prestaria um serviço maior para a humanidade.