Azul é a cor mais quente


O diretor tunisiano, Abdellatif Kechiche nos apresenta um estilo de filmagem extremamente naturalista em “Azul é a cor mais quente” (La Vie D'Adèle, 2013). O filme é uma livre adaptação da HQ Bleu Est Une Couleur Chaude, escrita e desenhada pela francesa Julie Maroh e narra uma história de amor entre duas meninas. O filme se baseia nesse contexto para dissecar minuciosamente todo o processo de uma relação amorosa, desde o seu início até o fim. O que chama atenção é a forma como esse recorte é feito e conduzido, prezando valorizar o tempo dos acontecimentos e os sentimentos das personagens envolvidas.

Após vencer a Palma de Ouro de Melhor Filme, em Cannes, o longa-metragem vem causando muita polêmica devido as performances das cenas de sexo das duas atrizes. Kechiche diz que a intenção é de justamente banalizar o sexo no cinema, no sentido de que ele deve ser encarado como algo natural e que contribui intensamente para compor o contexto da paixão das duas personagens. Léa Seydoux e Adèle Exarchopoulos contam que se divertiram muito durante as gravações e que não tiveram nenhum problema com tais cenas.

A dificuldade mesmo para elas foi lidar com o estilo de direção de Kechiche, que procurava sempre extrair o máximo grau de realismo na interpretação, tanto que em alguns momentos ele pedia para que elas esquecessem o roteiro e agissem de forma espontânea com o intuito de fazer que a interação de uma com a outra fosse realmente sincera. Léa conta que, para algumas cenas, Kechiche fazia vários takes até o momento em que as atrizes deixassem de ser suas personagens e fossem elas mesmas. E esse era um processo bastante difícil e sofrido, mas que valeu a pena, pois o resultado obtido é simplesmente arrebatador. Com isso, o filme apresenta um olhar microscópico sobre o amor. As imagens parecem captar e corporificar a abstração de sentimentos como a paixão, o amor e a excruciante dor de perdê-lo.

A narrativa se desenrola num lento ritmo, porém nada maçante. Tal recurso contribui para reforçar o grau de naturalidade das cenas e justifica por completo as suas três horas de duração. A partir de Adèle, e do seu ponto de vista, é que se estrutura e se estabelece toda a teia dos acontecimentos que rodeiam sua vida: seja na escola em que estuda, em casa com os pais, ou com os amigos. É através da vivência do seu cotidiano que ela vai sendo apresentada, estabelecendo com isso uma conexão entre os espectadores e a personagem. Ao descobrir sua sexualidade, a vida de Adèle parece sair da “normalidade”. Ela fica completamente fascinada por outra menina. Emma é gay, mais velha e tem olhos e cabelos azuis. O desenrolar da história e o quanto sua vida se modifica está ligado ao momento em que ela e Emma se envolvem.

Alguns teóricos cinematográficos consideram o cinema como um espelho do mundo que, de certa forma, mostra ou oculta a maneira como vivemos e o contexto sócio-histórico-cultural que nos encontramos. A construção da representação do sexo gay sempre foi e ainda é tratada com um enorme cuidado moralista. O que não ocorreu e não ocorre, por exemplo, na maneira como é retratada a violência. Esta sim, está plenamente banalizada, não só pelo cinema, como pelos outros meios de comunicação. O ator americano James Franco co-dirigiu e produziu o mockmentary (falso documentário) “Interior. Leather Bar” (idem, 2013) sobre os bastidores do que seria uma tentativa de reconstituição das cenas que foram proibidas de serem exibidas, na época de lançamento do filme “Parceiros da Noite” (Cruising, 1980). Estrelado por Al Pacino, a produção conta a história de um policial que investiga a morte de diversos homossexuais. O personagem de Pacino se disfarça e finge ser gay para mergulhar nesse universo. A questão que Franco levanta e diz no seu mockmentary é que ele não gosta do fato de sentir que foi levado a pensar de um certo jeito e que esse jeito comportamental normativo heterossexual seria o correto e o natural de ser.

A reação da mídia e das pessoas ao polemizarem a respeito das cenas de sexo no filme de Kechiche é algo que não pode deixar de ser considerado. Será que pensamos devido a forma como as coisas nos são apresentadas ou elas são apresentadas para que pensemos na forma como devemos interpretá-las? A partir disso, pode-se dizer que a proposta de Kechiche por uma verossímil naturalidade ao narrar a fictícia história de amor entre duas mulheres vai além de um mero aspecto linguístico e passa a expressar o quanto essa prática do olhar pode também se fazer presente diante do cotidiano da vida real. E que a construção das representações possui uma simbiótica relação de todos, seja daqueles que as elaboram ou daqueles que dentro delas estão elaborados. Léa Seydoux diz em uma entrevista que espera que esse filme contribua um pouco para que o cinema se modifique. Bom, talvez isso possa levar ainda algum tempo, mas uma coisa é certa, todos saimos completamente modificados depois de testemunharmos a história de Emma e Adèle.

(Confira a descontraída entrevista das atrizes durante o Festival de Toronto)

Comentários

L. L. disse…
Já estava com vontade de ver esse filme e, após suas brilhantes considerações, fiquei ainda mais curiosa. Espero que seja lançado em Vitória.
Lili Goes disse…
A curiosidade em conhecer uma história de um amor não "convencional" foi o que me levou a assistir esta película. Com cenas quentes e fortes mas com muita simplicidade e poesia. Pra mim a melhor cenacdo filme: quando as duas estão no campo deitadas e começa a troca de olhares - belo e lírico.