Amor


Michael Haneke é um genial sádico provocador. Basta olhar alguns de seus filmes: “Violência Gratuita” (Funny Games, 1997), “Professora de Piano” (La Pianiste, 2000), “Caché” (idem, 2005) e “Fita Branca”(Das weiße Band - Eine deutsche Kindergeschichte, 2009), sendo que com este último ele também foi premiado com a Palma de Ouro em Cannes. Todos os seus filmes parecem estar na tela como forma de provocar o nosso olhar, a nossa paciência e a nossa sensibilidade. Isso porque ele preza por uma montagem naturalista, mostrando aquilo que geralmente é cortado durante esse processo. Ou seja, se um personagem diz para o outro esperar um instante enquanto ele vai chamar alguém, o que iremos ver é esse momento da espera. Assim, o personagem espera e nós, os espectadores, também. Além disso, o interesse de seus temas se articula com aquilo que se expressa como peculiaridades da nossa condição humana envoltas pelo seu olhar muito próprio e atípico. Temas como violências e fetiches injustificáveis ou ações ocorridas num passado que preferimos não mencionar, são alguns exemplos do que Haneke busca abordar. Podemos pensar que para ele a experiência da vida está naquilo que justamente optamos por negar ou esconder. E talvez por isso, entrar em contato com seus filmes seja um processo difícil.

Confesso que fiquei surpresa e extremamente curiosa quando soube que ele havia feito um filme com o título “Amor” (Amour, 2012). Mas, não me deixei enganar que seria algo com imagens românticas, meigas e sentimentais, pelo menos não no sentido padrão do que geralmente se encontra em filmes desse gênero. E realmente, e obviamente, o filme assim não é. Trata-se da história de um casal de idosos, George (Jean-Louis Trintignant) e Anne (Emmanuelle Riva) e sua rotina dentro do apartamento onde moram. Eis que Anne sofre um AVC e fica com o lado direito do seu corpo paralisado. A partir daí, George passa a cuidar dela, e é também a partir desse momento, que Haneke nos mostra onde está o verdadeiro, sincero e incondicional amor entre duas pessoas. Isso tudo sem o menor vestígio de pieguice ou sentimentalismo. A ausência de trilha sonora já remove uma boa parcela do que não se pretende maximizar durante as cenas mais intensas. Outro fator é a fotografia em tons pastéis e frios, que nos faz ter um olhar mais prático e real de toda a situação vivida entre o casal. Isso se estende até mesmo no figurino dos personagens, tanto que a filha do casal (Isabelle Huppert), que é quem fica mais abalada e emotiva em relação a história, usa roupas mais coloridas. O filme se passa somente em uma locação, que é o apartamento onde George e Anne vivem. As únicas paisagens que vemos são as dos quadros pendurados nas paredes, havendo inclusive uma cena em que se mostra uma sequência deles.

As atuações de Jean-Louis Trintignant e Emmanuelle Riva é algo quase que inacreditável de tão perfeito. Principalmente para Emmanuelle, que com seus 85 anos de idade, se propõe a uma entrega completa a uma personagem que se definha física e mentalmente. São cenas consideradas corporalmente difíceis para uma atriz jovem, quem dirá para ela. Sua atuação está simplesmente magistral! Já Trintignant é um ator “monstro, mas gentil”, como diz Anne para George em uma das cenas do filme. Cena esta que considero o núcleo semântico da narrativa. George conta uma história para Anne de que quando era jovem foi assistir a um filme romântico e saiu completamente emocionado. Ao voltar para casa, encontrou com um vizinho que era um brutamontes e contou para ele sobre o filme que tinha visto. Ao relatar a história do filme, ele se emocionou novamente e chorou na frente do brutamontes. George diz não se lembrar bem sobre o que era a história do filme, mas se lembrava claramente como havia sido a sua emoção. E é isso que Haneke quer nos dizer, que não importa como, onde ou qual é o motivo de sentirmos o que sentimos, o que vale é a emoção em si e o reconhecimento dela tal como ela venha. E que não há problema em admitirmos que a vida pode ser ao mesmo tempo incômoda, bela, difícil e surpreendente. Ela possui uma inteligência própria que se revela na nossa ilusória possibilidade de controlá-la. É por isso que o amor que Haneke nos oferece não é para quem tem coração, e sim para quem tem estômago.

Comentários

NDORETTO disse…
Depois de um artigo desses, bora ver o filme!!!
Querídissima, adoro seus comentários e sua presença no meu blog. Gratíssima______________beijos!
Haneke, sempre.
Quisera todo cineasta ter um pouco da sua inquietude.




Obs.: A moderação de comentários é um saco.
João. disse…
Esse filme é um soco no estômago.